Índice da Obra     Anterior: 6 – Falhas do Marxismo: Premissas e Modelo de Organização     Seguinte: 8 – A Democracia do Futuro

7 – PROBLEMAS MUNDIAIS E OS MODELOS POLÍTICOS DOMINANTES

Alguns dos Principais Problemas Mundiais

Após termos examinado as correntes de pensamento dominantes (que se tornaram amplamente hegemônicas desde o final da Segunda Guerra Mundial), bem como as limitações das suas principais instituições, especialmente seus modelos de organização política, devemos agora examinar a ligação direta desses modelos políticos com os problemas mundiais, ainda que isso já possa ter sido vislumbrado ao longo das análises apresentadas anteriormente.

Iniciemos, então, explicitando alguns dos principais problemas mundiais de nossa época, os quais devem estar fundamentalmente relacionados com essas correntes de pensamento dominantes. Isto é, como causa de fundo, esses grandes problemas devem ter sido gerados por essas ideias dominantes, uma vez que fundamentalmente são as ideias que regem o mundo. Já como causa imediata desses problemas temos que examinar as grandes instituições sociais derivadas dessas ideias dominantes, sobretudo os seus modelos de organização política, devido ao seu papel determinante sobre as demais grandes instituições.

A bem da justiça, não podemos ignorar que as principais alternativas que se apresentaram ao mundo, especialmente na primeira metade do século XX, isto é, o Nazismo e o Fascismo, eram correntes de pensamento (com seus modelos de organização sociopolítica) ainda mais tragicamente equivocadas do que as duas já examinadas, que hoje são globalmente hegemônicas.

Do mesmo modo, os exemplos alternativos aos modelos hoje dominantes, embora de menor significância no contexto mundial, são ainda piores do que o Liberalismo e o Marxismo. Nos referimos, sobretudo, aos fundamentalismos religiosos, a exemplo do fundamentalismo islâmico, entre outros. Esses regimes fundamentalistas também contribuem significativamente para a miséria de nossa época, embora não mais de maneira hegemônica. Portanto, não podemos atribuir todos os males de nossos dias ao Liberalismo e ao Marxismo.

Na verdade, é certo que, apesar de tudo, devamos sentir boa dose de gratidão a essas duas correntes de pensamento e suas instituições, pois foram elas que nos salvaram de uma tragédia muito maior, que seria um domínio mundial nazifascista. Nesse sentido, a respeito da democracia liberal, Winston Churchill tornou famosa a irônica afirmação de que se trata “do pior modelo político, com a exceção de todos os outros”. Ele era realista o suficiente para não esperar resultados fantásticos desse modelo de organização política, e costumava dizer que o melhor argumento contra a democracia liberal era “uma conversa de cinco minutos com um eleitor médio”. Lembremos dessas frases:

“Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos.”
“O melhor argumento contra a democracia é uma conversa de cinco minutos com um eleitor mediano.” (https://www.pensador.com/frases_churchill_democracia/)

Feita essa ressalva dos parágrafo anteriores, passemos à análise de alguns dos principais problemas mundiais, entre os quais certamente temos:

1) O abismo de riqueza existente entre as nações, isto é, o contraste entre os países ricos e os pobres, ou entre os assim chamados países “desenvolvidos e os subdesenvolvidos”, e

2) As agressões e consequentes desequilíbrios do meio ambiente natural, com os desastres ecológicos e climáticos daí resultantes.

Dizemos “alguns dos principais problemas” porque, de fato, há outros problemas muito sérios a demonstrar a gravidade da atual situação mundial. Lembramos aqui, ainda que também a título de exemplificação, do abismo de riqueza existente dentro da população de uma mesma nação, ou seja, o contraste entre os muito ricos e ricos e os muito pobres e miseráveis dentro de um mesmo país. Do mesmo modo, as agressões, ou a crueldade imensa das atuais formas de tratamento dispensado aos animais, seres sencientes. E ainda, a violência de muitos tipos que parece insolúvel e, talvez, crescente dentro das nações, especialmente aquelas mais pobres, mas também a violência internacional, quer sob a forma de terrorismo, ou sob a forma de conflitos armados.

Outros graves problemas sociais poderiam ser adicionados, bastando citar ainda as precárias condições de amparo à saúde dos mais necessitados; a inadequação e brutalidade dos sistemas educacionais; ou o cruel e ineficiente tratamento dos presidiários.

Esperamos, no entanto, que as análises que faremos dos dois primeiros exemplos desses grandes problemas (destacados acima) possam ser, por analogia, aplicadas aos demais grandes problemas mundiais.

Quanto ao primeiro exemplo de grande problema mundial, o chamado “subdesenvolvimento” tem por trás de si a miséria, a violência e o abandono de milhões e milhões de seres humanos. Esse é um quadro completamente inaceitável, o qual cedo ou tarde gerará uma indignação e uma revolta incontrolável, trazendo consigo grandes riscos, como formas cada vez mais violentas de terrorismo, migrações forçadas de grandes populações e até mesmo de guerras.

Já quanto ao segundo exemplo de problema mundial, ou seja, as crescentes formas de poluição e de destruição do meio ambiente natural, estão gerando desequilíbrios seríssimos, que apontam para consequências que já começam a ser observáveis no horizonte mundial, e cujos efeitos de amplas catástrofes já são cientificamente previsíveis, mesmo que ainda possam estar um pouco distantes.


A Dinâmica Perversa da “Livre” Competição Internacional Como Causa Imediata dos Principais Problemas

Avançando na análise desses problemas, devemos agora responder as seguintes questões: 1) Por que a diferença de riqueza entre as nações aumentou tanto ao longo dos últimos séculos, gerando um abismo econômico e social entre as nações mais ricas e as mais pobres? 2) Qual a causa principal das crescentes agressões ao ambiente natural, e o que tem tornado seu controle algo tão difícil?

Repetindo, esperamos que as análises a seguir apresentadas possam ser aplicadas, por analogia, aos demais grandes problemas mundiais.

Alberto Guerreiro Ramos, em sua obra A Nova Ciência das Organizações, nos oferece uma pista na direção da resposta a essas questões. Guerreiro Ramos, é importante salientar, teve seus direitos políticos cassados durante o autoritarismo militar, e foi também criticado e marginalizado pela esquerda. Ele faleceu na década dos anos 80 (após lecionar, na Universidade do Sul da Califórnia, entre outras universidades). Vejamos a citação:

“Os resultados atuais da modernização, tais como a insegurança psicológica, a degradação da qualidade da vida, a poluição, o desperdício à exaustão dos limitados recursos do planeta, e assim por diante, mal disfarçam o caráter enganador das sociedades contemporâneas. A auto definição das sociedades industriais avançadas como portadoras da razão está sendo diariamente solapada. Esse clima de perplexidade pode viabilizar uma reformulação teórica de enorme magnitude.” (A Nova Ciência das Organizações, p. 22; grifos nossos)

Essa citação de Guerreiro Ramos sugere que esses problemas são os resultados da forma atual de globalização, porque ela tem gerado uma espécie de competição insana e incontrolável entre as nações (e as grandes organizações transnacionais) pelos ganhos de produtividade, o que caracteriza, centralmente, a capacidade de competir economicamente em termos internacionais.

O que está por detrás da verdadeira compulsão pelos ganhos de produtividade (e consequente lucratividade), portanto, é a atual forma de globalização econômica, que tem gerado uma desenfreada e incontrolável competição entre as nações, numa espécie de “guerra” econômica de todos contra todos no cenário internacional. E por que é tão incontrolável esse processo (não raro tido, por isso mesmo, como “necessário”, ou “inevitável”), cujos resultados clara e cientificamente previsíveis são as catástrofes? Por que não existe no mundo força capaz de regular esse processo?

A resposta a essa questão fundamental para a compreensão dos grandes problemas mundiais está, exatamente, na insuficiência dos modelos de organização política derivados das ideias dominantes em nossa época. Isso porque, como vimos anteriormente, a fraqueza, a injustiça e a incompetência desses modelos os tornam submissos ao poder das gigantescas corporações nacionais e, sobretudo, transnacionais.

Essas gigantescas organizações, por sua vez, não podem deixar de sempre buscar ganhos de produtividade (que significa a capacidade de produzir mais e melhor com a mesma, ou se possível com menor quantidade de recursos), avanços tecnológicos, e outras contínuas mudanças desse tipo, isto é, de buscarem ganhos em relação aos demais gigantescos competidores, o que significa uma maior competitividade econômica, principalmente internacional. E não podem sair dessa compulsória busca porque se assim fizerem serão excluídas desse gigantesco mercado concorrencial.


A Competição Entre as Grandes Organizações

Focando a análise nesse aspecto econômico, podemos observar que as grandes organizações empresariais estão obrigadas a uma luta permanente por ganhos de produtividade, o que implica em avanços tecnológicos etc., porque elas sabem que se deixarem de agir assim serão destruídas, na medida em que serão derrotadas na competição com as outras gigantescas organizações econômicas com as quais disputam. E são essas gigantescas organizações econômicas, juntamente com outras grandes corporações públicas ou privadas, que não raro têm como “fantoches” os governos, pelo menos dentro da debilidade, incompetência e injustiça que são absolutamente inerentes aos atuais modelos das chamadas democracias liberais, as quais nem sequer deveriam ser chamadas de “democracias”, como já antes afirmamos anteriormente, porque, na verdade, se tratam de plutodemagogicracias.

As grandes empresas e corporações, desse modo, arrastam irresistivelmente os países para essa constante guerra econômica, com suas inevitáveis consequências que são – entre outras tantas, como dissemos antes – o abismo econômico e social entre as nações, e também a imensa destruição da natureza, gerando desequilíbrios ambientais de consequências catastróficas.

Essa competição internacional das grandes empresas tem inclusive forçado a criação de grandes blocos econômicos de países, pois as grandes empresas necessitam de uma dimensão de mercado que lhes possibilite ganhos de escala, a fim de que sejam capazes de competir, de igual para igual, com aquelas dos países com os maiores mercados consumidores nacionais.


A Debilidade dos Atuais Modelos de Democracia Liberal

Constatamos, desse modo, que o mundo na atualidade está dominado por essa guerra incontrolável pelos avanços de competitividade. O importante é compreendermos que, dentro do cenário dos atuais modelos de organização política, nenhum Estado, e nenhuma organização internacional dos Estados (como a ONU, ou qualquer outra menor), possui a força suficiente para regular ou harmonizar esse processo global.

Isso porque, como vimos, esses modelos, quer liberais ou marxistas, não garantem ao mesmo tempo liberdade, oportunidades iguais, e adequação entre funções e capacidades nos processos de seleção dos governantes. E, assim sendo, não promovem uma boa escolha dos governantes, ao mesmo tempo que, organizacionalmente, não geram o poder de coerção, ou a força política necessária para regular a atuação dessas gigantescas organizações.

Esse fato pode parecer não ser verdadeiro no caso dos totalitarismos marxistas, como no exemplo paradigmático da China e seu grande crescimento econômico e de influência geopolítica nas últimas décadas. Seu modelo político totalitário e escalonado (ou piramidal) gera muita força de coerção. Porém, no longo prazo, a falta de liberdade vicia todo o processo de escolha dos dirigentes, o que termina por gerar grandes problemas, os quais resultam em crises e num resultante enfraquecimento daquele regime, como pudemos claramente observar no caso da União Soviética, ou em uma significativa transformação desses regimes, como no caso da China, a qual em nossos dias é mais uma forma de capitalismo autoritário de Estado do que um regime tipicamente marxista. Mais adiante, ainda nesse capítulo, voltaremos ao caso dos modelos marxistas.

Cabe enfatizarmos que essas más escolhas dos dirigentes ocorrem, sobretudo, no âmbito das instituições públicas, ou do Estado, pois nas grandes empresas privadas a busca por sempre maior competitividade impõe que se atenda à regra da adequação entre funções e capacidades, pelo menos em termos técnicos (pois em termos éticos a seleção das empresas também é obviamente questionável, uma vez que seu objetivo supremo é o lucro). Isso torna as grandes corporações ainda mais poderosas em relação aos governos estatais, porque seus dirigentes são frequentemente mais capacitados do que os dirigentes políticos das nações. Um verdadeiro absurdo, porém real.

A essa inerente e inevitável incompetência dos governantes soma-se, no caso dos atuais modelos liberais, a debilidade de uma organização social frouxa e fragmentada. Além dessa debilidade estrutural, nesse modelo, como já visto em capítulos anteriores, os governantes, não raro, são fantoches que têm suas caríssimas campanhas eleitorais financiadas pelas grandes organizações. Nesse sistema, tão injusto quanto incompetente, a única alternativa que resta são os demagogos de todos os tipos, que se apresentam como salvadores voluntaristas capazes de sanar os grandes problemas gerados por esse próprio sistema. Isso, além de tantos outros problemas, abre o caminho para o surgimento de diferentes formas de autoritarismo, como podemos observar em vários momentos da história brasileira e de muitas outras nações periféricas.

Essa inevitável incompetência no processo de escolha dos governantes, naturalmente, é o principal mecanismo gerador da imensa corrupção que é inerente às formas atuais das democracias liberais. E a corrupção em grande escala resulta em uma deformação de todo o processo sociopolítico desses países, auxiliando a perpetuar o enorme diferencial de riqueza entre as nações, sem falar dos demais problemas, como o abismo socioeconômico dentro das próprias nações, e outros tantos problemas já mencionados. Pois as grandes decisões políticas, econômicas etc., acabam sendo viciadas e desviadas dos melhores rumos em prol do bem estar geral, por causa dos interesses privatistas de indivíduos e grupos que as influenciam – grupos que com frequência estão associados com interesses de gigantescas organizações, nacionais e, não raro, transnacionais.

Cabe lembrar, uma vez que esse livro foi revisado aproximadamente nesse período (2019-20), que os fatos recentes e mesmo atuais da vida política brasileira parecem sugerir que essas análises tenham sido feitas nesses últimos anos. Contudo, o original desse livro é de 1994, e a obra, inicialmente, foi uma adaptação ao público de uma dissertação de mestrado de 1984. Essa observação visa apenas enfatizar a correção das análises feitas, mais de trinta anos antes dos atuais escândalos políticos, que agora tornaram quase óbvios esses fatos, aqui apontados com décadas de antecedência.

No atual quadro de enorme desigualdade entre as nações fruto inicialmente, sobretudo, de séculos de exploração e acumulação mercantil-colonialista, potencializados, nos últimos dois séculos pelos ganhos proporcionados pelas chamadas Revoluções Industriais, que iniciaram e se desenvolveram ainda dentro de uma ordem internacional colonialista e que se perpetuam até nossos dias dentro de uma ordem internacional neocolonialista a única esperança de que esse abismo de riqueza, poderio econômico, militar etc., possa ser minorado e harmonizado reside, justamente, em que essas nações mais pobres pudessem ter sistemas políticos justos e competentes, que permitissem o advento de governos honestos e comprometidos com o bem estar geral da população, além de tecnicamente bem capacitados e dotados do suficiente poder de coerção que os capacite a regular a atuação das grandes corporações.

Estamos afirmando que a única esperança de significativas melhorias para os grandes problemas dos países periféricos (e, portanto, para o mundo globalmente) reside no advento de estruturas políticas que viabilizassem governos eticamente confiáveis e dotados com o poder suficiente que lhes permitisse orientar os processos socioeconômicos e de política internacional na direção de uma cada vez menor desigualdade entre as nações, e com cada vez menor destruição dos ambientes naturais.

Exatamente isso é o que não ocorre dentro do ambiente de incompetência, corrupção e fraqueza inerentes às atuais formas de democracia liberal, as quais são hoje, não por acaso, mundialmente hegemônicas. Ou seja, esses modelos tão corruptos e incompetentes são promovidos de todas as maneiras (inclusive por meio de guerras), pelos países mais ricos e dominantes, uma vez que esses modelos atendem seus interesses de perpetuação desse quadro neocolonialista que caracteriza nossa época.

Nas ocasiões em que essa lógica de dominação internacional aparenta não ocorrer (dentro dos regimes das atuais formas de plutodemagogicracias liberais), e chega a ser eleito para os mais altos postos algum tipo de demagogo-populista, que é a única outra possibilidade dentro das atuais regras políticas – além dos fantoches das grandes empresas e corporações – esse governo demagógico-populista, mesmo que pretendesse tomar medidas realmente saneadoras, seria impotente ante a força avassaladora das grandes organizações (públicas e privadas). A história recente apresenta claros exemplos desse tipo, a começar pelo Brasil, com seus vários golpes de estado e rupturas constitucionais.


 A Incompetência do Modelo Marxista

Os países que adotaram o modelo marxista, a exemplo da, agora extinta, União Soviética, também não evitaram o destino de serem afetados pela força dessa guerra pela competitividade-produtividade, imposta pelos países centrais, mais industrializados e organizados dentro dos modelos das atuais formas das plutodemagogicracias liberais.

Esse percurso forçado de se verem influenciados pela guerra de produtividade entre as nações, contudo, deve-se menos aos méritos dos países centrais, e muito mais às insuficiências internas geradas pela rigidez e pela falta de liberdade do modelo marxista. Essas características desse modelo, como analisamos antes, além de afrontarem a dignidade humana, ferem a igualdade de oportunidades e embotam a criatividade. Disso resultam, necessariamente, problemas sociais, econômicos e ambientais e, em consequência, uma insatisfação generalizada no longo prazo.

É importante repetirmos e salientarmos que esse processo global – o qual é incontrolável dentro do quadro dos atuais modelos de organização política – é o responsável imediato tanto pelas imensas agressões ao ambiente natural, quanto pelo quadro de perpetuação da excludência econômica e social do dito subdesenvolvimento. Examinemos um pouco mais detalhadamente como isso se dá, tomando para análise exemplos de casos concretos.


A Dificuldade do Usufruto Sustentável da Amazônia e o “Subdesenvolvimento” Brasileiro

Consideremos agora, a título de casos concretos de problemas mundiais, 1) a continuada dificuldade de preservação e usufruto tecnicamente consistente e sustentável da Floresta Amazônica (que é um dos grandes problemas ambientais de relevância global, uma vez que diz respeito à preservação de um bioma da maior importância para todo o mundo), e também, 2) o problema maior dentro do qual se situa essa questão ambiental, que é o quadro da desigualdade, relativa pobreza e as várias mazelas sociais e econômicas que caracterizam o caso brasileiro, isto é, examinemos a questão maior do dito “subdesenvolvimento” brasileiro.

Essa análise, por analogia, deverá servir para auxiliar a compreensão de outras graves agressões ambientais, bem como outros tantos problemas inerentes à desigualdade e à miséria que afligem muitas outras nações, que não raro apresentam quadros mais graves do que o caso brasileiro. Com isso em mente, passemos à análise desses exemplos concretos.

A tabela, os gráficos e o mapa que trazemos abaixo visam oferecer uma visão sintética do que foi o desmatamento da Floresta Amazônica de 1960 até o momento em que se escreve essa revisão.

Taxa de Desmatamento na Amazônia Legal 1988-2019 (INPE)

Fonte: http://www.obt.inpe.br/OBT/assuntos/programas/amazonia/prodes 
Estimativa para 2019 em azul; consolidado em 06/2020: 10.129 km2
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Nota sobre as fontes – Os dados que nos permitiram montar a primeira tabela e o primeiro gráfico acima, foram retirados das seguintes publicações:
AZEVEDO, Andrea., et al. Panorama Sobre o Desmatamento na Amazônia em 2016. IPAM, Brasília, DF, Brasil. 2016.
FEERNSIDE, Philip M. Desmatamento na Amazônia Brasileira: Com Que Intensidade Vem Ocorrendo? – Acta Amazonica. vol.12 no. 3 Manaus, Jul/Set. 1982 (Versão original em inglês: Interciencia, 7 (2): 82-88, 1982.)
MATOS, Judson Magno da Silva, et al. Avaliação da Evolução do Desmatamento em Assentamentos do Incra a Partir dos Dados do Prodes e Deter para os Anos 1997-2010. INCRA, Brasília, DF. Publicado em Anais XV Simpósio Brasileiro de Sensoriamento Remoto, Curitiba, PR, Brasil, 2011. INPE p.5833-5840

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Mapa da Amazônia Legal com Desmatamentos Acumulados até 2015 (em vermelho) e Registrados em 2016 (em preto).


Elaboração do mapa acima: IPAM; fonte dos dados: Prodes/INPE.

Até os anos sessenta o percentual de desmatamento da Floresta Amazônica ainda era pequeno, e os sistemas de utilização das terras e de exploração dos recursos naturais ainda não tinham apresentado um impacto de maior relevância. Já a partir dos anos setenta a política do governo federal passou a objetivar a ocupação territorial e a exploração das riquezas da Amazônia. Assim, vários incentivos promoveram a migração para aquela região, tendo como resultado o desmatamento, que a partir de então passa a ser significativo, como mostram a tabela e o gráfico acima apresentados.

Do mesmo modo, o mapa apresentado acima visa mostrar de maneira sintética o quanto da Floresta Amazônica já foi desmatado. Vemos ali que muito embora grande parte da Amazônia central esteja preservada, o desmatamento já é muito significativo, sobretudo nas bordas sul e leste, que mostram claramente o chamado “arco do desmatamento”.

O governo promoveu um projeto de colonização, juntamente com a abertura de estradas, cuja principal foi a Rodovia Transamazônica, que adentrou a floresta na direção Leste-Oeste. Mas também houve outras rodovias que avançaram na direção Sul-Norte. Além disso, houve incentivos governamentais, tanto na área fiscal quanto de créditos, visando a ocupação e a exploração dos recursos da região.

Somente esses projetos governamentais levaram centenas de milhares de famílias para a região amazônica. No entanto, além disso, a região passou a ser um polo de atração tanto para os que buscavam formas de sobrevivência, quanto para os que buscavam rápidos negócios lucrativos.

Pelo menos nas primeiras duas décadas a preocupação com a conservação dos recursos naturais foi pequena. Isso, naturalmente, acelerou o desmatamento, como podemos acompanhar na série histórica da tabela acima apresentada.

Depois disso, então, a legislação passou gradualmente a refletir a preocupação com a recuperação e a proteção do bioma da Floresta Amazônica. Os percentuais de Reserva Legal foram aumentando de 20% (1965), para 50% (1989), e para 80% (2001).

Essas medidas, entre outras, que significavam maior preocupação com a conservação, como o sistema de monitoramento via satélite, e a aplicação de multas etc., obtiveram impacto que também pode ser observado no gráfico apresentado, no sentido de diminuir o tamanho das áreas anualmente desmatadas.

Chegamos, assim, aos dias atuais, quando o desmatamento encontrou certa estabilidade, porém em níveis ainda preocupantes. Para uma visualização da situação atual e seus problemas, trazemos a seguir duas citações de pessoas voltadas para o estudo e para a preservação da Amazônia. Observe-se que na conclusão das duas citações de estudiosos preocupados com a conservação e sustentabilidade da utilização econômica da Floresta Amazônica podemos ler que a questão política é trazida à consideração. Em resumo, as duas citações afirmam dificuldades relacionadas à questão política, bem como a necessidade de mudanças nessa área. Vejamos as citações.

Primeiro, alguns parágrafos do estudo “Panorama Sobre o Desmatamento na Amazônia em 2016” e, segundo, alguns parágrafos de uma entrevista com o cineasta Fernando Meireles, conhecido pelo seu engajamento em causas ambientais, sobretudo a preservação da Floresta Amazônica:

(1) Primeira citação:

“O desmatamento em 2016 foi o mais alto desde 2008, atingindo praticamente 8.000 km2 com aumento de 28,7% em relação a 2015.
O desmatamento na Amazônia Legal reduziu mais de 70% desde 2004, quando alcançou o segundo pico mais alto da história do monitoramento do bioma (27.772 km2). Naquele ano, o governo federal criou vários dispositivos para controlar o problema, entre eles a lista de municípios críticos. Essas e outras medidas assumidas desde então ajudaram a reduzir o desmatamento na região.
O bom resultado levou o Brasil em 2010 a propor uma meta de 80% de redução da derrubada em relação à média registrada entre 1996 e 2005 (19.615 km2) em seu Plano Nacional de Mudanças Climáticas (PNMC). Na prática, o país terá de chegar em 2020 com aproximadamente 3.925 km² de desmatamento anual, um caminho na direção do anseio da sociedade em zerar o desmatamento na Amazônia, compreendendo um importante passo para a estabilização climática, sem comprometer o desenvolvimento econômico e social da região.
Contudo, de 2009 a 2015 o desmatamento manteve-se estagnado em um patamar médio de 6.080 km2.
Em 2012 ainda se obteve a taxa mais baixa registrada nos últimos 20 anos na Amazônia (4.571 km2), mas após esse ano tivemos sucessivos aumentos e pequenos recuos.
Tal dinâmica já indicava que “a gordura” fora queimada e que o esforço de redução para taxas ainda menores, como estabelecido no PNMC (Política Nacional de Mudanças Climáticas), seria maior e mais desafiador.
Nos últimos dois anos, as taxas registradas pelo INPE aumentaram, chegando em 2016 a 7.989 km2, a maior desde 2008. Isso significa que se desmatou o equivalente a 128 campos de futebol do Maracanã por hora em 2016.
Mesmo dentro de um contexto de crise política e econômica que o Brasil vive nos últimos dois anos, para se alcançar a meta estabelecida e manter a queda na taxa de desmatamento, há de se ter um esforço feito por toda sociedade, com uma nova estruturação das ações de comando e controle, criação de uma agenda positiva de incentivos à eficiência da produção em áreas já desmatadas e mais apoio para quem mantém seu ativo florestal, bem como mais participação do mercado e do sistema bancário no controle do desmatamento.
Outro aspecto muito importante se refere à governança ambiental ligada ao desmatamento e a implementação do Código Florestal, e, nesse sentido, o envolvimento dos municípios no processo deve voltar a ser fortalecido.” [grifos nossos] (“Panorama Sobre o Desmatamento na Amazônia em 2016”, IPAM AMAZÔNIA. De Andrea Azevedo, Ane Alencar, Paulo Moutinho, Vivian Ribeiro, Tiago Reis, Marcelo Stabile, André Guimarães)

(2) Segunda citação:

“A ocupação acelerada levou para a região (amazônica) venda ilegal de madeira, crime, violência, crack e todo tipo de distúrbio dos grandes centros urbanos, mas não uma estrutura para lidar com eles. (…)
Como não estamos prontos para ocupar uma região tão frágil e importante, o melhor é deixar como está, como um legado para os nossos netos. Um ato de generosidade histórica.
(…) A preservação do meio ambiente não faz parte do DNA das empresas mineradoras. Elas fazem pelo ambiente, no máximo, o que manda a lei, que, como vimos, são elas mesmas que pagam para serem escritas e aprovadas. (…)
Há uma contradição entre se dizer preocupado com as mudanças no clima, mas comer carne dez vezes por semana. Ou você abre mão de alguns hambúrgueres, ou pare de dizer que se preocupa. Estudos dizem que o hábito de comer carne é responsável por 15% dos gases de efeito estufa, fora ser também a principal causa de desmatamento da Amazônia. (…)
Ninguém consome impunemente. Ir a pé ou de bicicleta é melhor do que usar transporte público, que é melhor do que usar carro, que é melhor se for abastecido com etanol.
Escolhas fazem diferença, mas, no caso das mudanças climáticas, por mais que mudemos hábitos, as decisões que podem realmente mudar o jogo estão nas mãos do Estado.
Troca de matriz energética, o incentivo a fontes limpas, o financiamento de agricultura de baixo impacto e empenho na recuperação de áreas degradadas são ideias que dependem da vontade do poder público.
No Brasil essa não tem sido a pauta dos últimos governos. Escolher candidatos ou partidos comprometidos com essas ideias fará muita diferença para nosso futuro. (…)” [grifos nossos] (Partes de entrevista do cineasta Fernando Meireles, falando de seu engajamento em causas ambientais, ao jornalista Marcelo Leite, publicada no jornal Folha de São Paulo, em 14/10/2017)

Como vemos, nas duas citações temos a conclusão da grande responsabilidade e do necessário envolvimento do poder público, bem como de mudanças nas políticas públicas. O fato de que tais mudanças ficam praticamente impossibilitadas dentro do atual modelo político escapa da preocupação das duas citações, fato que apenas demonstra o que denominamos de “miséria das elites”, ou seja, a insuficiência e a necessidade de uma grande reforma no pensamento das elites. Conforme temos procurado evidenciar, essa “miséria das elites” na atualidade não é um problema apenas brasileiro, mas sim global.

Com isso em mente, podemos agora avançar um pouco mais em nossa análise. Quais os agentes imediatos da continuada devastação da Floresta Amazônica? Uma combinação da pobreza de muitos migrantes (que afluem para aquela região em busca de empregos, ou de um pedaço de terra que lhes permita melhorar sua sobrevivência), com a busca por lucros rápidos por parte de indivíduos e empresas que se deslocam para aquelas terras para explorar a madeira, criar gado, plantar, explorar minérios, e assim por diante. Todo esse processo, como vimos, por duas décadas teve o incentivo de políticas governamentais, com os resultados no desmatamento que apresentamos na tabela com a série histórica do desmatamento da Floresta Amazônica.

A motivação de muitos, então, foi e continua sendo a sobrevivência, que estava dificultada, entre outras razões, pela miséria e falta de empregos em suas regiões de origem. Já a motivação de outros é a oportunidade de lucros maiores e mais rápidos. Contando, primeiro com o apoio e depois com a negligência e incompetência das políticas públicas, esses são os agentes diretos da exploração mal planejada, que resulta na devastação, talvez irreversível, de biomas da maior importância, como já aconteceu no caso do Cerrado, com a extinção de muitas espécies vegetais e animais, seriamente comprometendo ambientes naturais, e como está acontecendo com a Floresta Amazônica. Nem seria necessário dizer que a riqueza e a importância ecológica desses dois biomas não têm par no nosso continente e, possivelmente, em toda a superfície terrestre do planeta.

Repetindo, por que esse processo tão grave de destruição do ambiente natural não é impedido? Por que não é ordenado e controlado de forma científica e planejada quanto à exploração correta e, portanto, sustentável da floresta? Obviamente, por causa da incapacidade e da falta de força política dos governantes. E a causa disso, conforme já mostramos antes, é a incompetência e a corrupção inerente aos modelos atuais de escolha dos governantes, que também dão origem a uma organização social sem coesão (e, assim sendo, são modelos que não geram suficiente força política). Esses aspectos caracterizam as formas atuais das chamadas democracias liberais, entre as quais temos os modelos adotados pela organização política brasileira.

Se poderia argumentar que no Brasil tivemos períodos de ordem democrática liberal intercalados por longos períodos de autoritarismo. Mas o que prova isso? Apenas, de um lado, reforça o argumento exposto da enorme fraqueza e incompetência das atuais formas dos modelos liberais, e de outro, que os líderes autoritários em questão, certamente também influenciados pelas ideias dominantes, não foram capazes de gerar um modelo alternativo de organização política que pudesse garantir um desenvolvimento social e econômico mais justo, equânime e sustentável para a nação.

De fato, os períodos de autoritarismo não conseguiram gerar modelos que tenham se tornado dominantes no pensamento das elites, nem sequer das elites militares. E quando as rupturas constitucionais ocorrem, dando início aos períodos autoritários, isso se dá muito mais pela incompetência e crise das instituições liberais (ou mesmo de inspiração marxista em outros países), e não por se constituírem modelos acabados e duradouros. Prova disso é que esses períodos autoritários terminam refluindo para os modelos dominantes, liberais ou marxistas (dependendo dos países considerados). Os quais novamente se mostram incompetentes, geram crises etc., e dão origem a novas rupturas autoritárias.

Destacamos aqui que a sequência lógica descrita nos parágrafos acima ocorre normalmente na esfera dos países periféricos. Isso porque nos países centrais, nos quais o patamar de riqueza média da população é muito maior, as atuais formas dos modelos democráticos liberais encontram uma conveniente estabilidade muito maior.

É muito importante compreender que esse enorme diferencial de riqueza (entre as nações ricas e pobres), de um modo geral, teve origem em séculos de colonialismo, que viabilizaram e alavancaram a estupenda agregação de valor e exploração que ocorreram no período das Revoluções Industriais (da segunda metade do século XVIII em diante). E que essa imensa desigualdade é mantida na atualidade pelas formas neocoloniais vigentes, com algumas nações possuindo economias muito mais complexas e industrializadas e que, assim sendo, geram muito maior agregação de valor, conforme analisaremos com maior precisão nos seguintes subcapítulos.

O exemplo concreto em questão, do continuado desmatamento da Floresta Amazônica, além do que já ocorreu no Cerrado, portanto, está claramente ligado à incompetência e à falta de força política dos governantes, que é uma das características centrais das atuais formas das pseudo democracias, que na verdade tratam-se de plutodemagogicracias liberais.

Que dizer então da miséria, da corrupção e da violência que caracterizam o dito subdesenvolvimento brasileiro, bem como dos países periféricos em geral? A sua perpetuação, isto é, a incapacidade desses países superarem esse quadro trágico, ano após ano, década após década, também está, é claro, diretamente ligada à incompetência e à debilidade de seus sistemas políticos injustos e incompetentes, como já examinamos nos capítulos anteriores.

Esses aspectos nocivos são inerentes aos atuais modelos políticos dominantes, quer de inspiração liberal, quer marxista. Como vimos antes, ambos os modelos são incapazes, por diferentes razões, de fazerem frente ao domínio das grandes corporações sobre seus processos sociais, políticos e econômicos. E, como também já analisamos antes, a consequência disso é a continuidade da trágica situação global, que aqui procuramos exemplificar com os aspectos do abismo entre a riqueza dos países cêntricos e periféricos, bem como com a destruição dos ambientes naturais, que afirmamos ser inescapáveis dentro da vigência da atual “miséria” ideacional (metafísica e ética) das elites e, consequentemente, dentro dos modelos políticos dominantes gerados por essa mesma “miséria” ideacional.

No caso brasileiro fica patente a relação desse quadro, sobretudo, com as formas atuais das plutodemagogicracias liberais, até mesmo porque nesse país ainda não tivemos a aplicação de um modelo de organização política de inspiração marxista, e os períodos de autoritarismo sempre refluíram para os atuais modelos liberais. Já no caso de vários outros países pobres de nosso continente, e pelo mundo periférico em geral, observamos consequências análogas sob modelos de organização política de inspiração marxista.


As Origens do Chamado “Subdesenvolvimento”

A questão de como se gerou esse quadro de excludência, de corrupção e de violência que caracterizam os países periféricos, ditos “subdesenvolvidos”, exige uma análise mais profunda. Isso, sobretudo, porque há países que aplicam os atuais modelos liberais e que são ricos, e onde a pobreza absoluta foi praticamente abolida, ou tal pobreza existe em uma dimensão muitíssimo menor do que nos países periféricos. E, assim sendo, esses países são frequentemente apresentados como modelos a serem copiados. Em outras palavras, a questão que se impõe aos países ditos “subdesenvolvidos”, e que muitos parecem não compreender claramente é: – se esse modelo deu certo lá, por que não deu certo aqui?

Em outras palavras, por que esses países ricos alcançaram o chamado “desenvolvimento”, e a maioria dos demais permaneceram “subdesenvolvidos”? Por que venceram no passado e continuam vencendo no presente a “corrida” pelo crescimento, avanço e maior complexidade de suas economias? “Corrida” essa que significa maior produtividade e competitividade, com o necessário e correspondente avanço tecnológico de seus processos produtivos. “Corrida” essa que perpetua até nossos dias (em certos casos até aumenta) o fosso de vantagens relativas e de riqueza que separa os países cêntricos dos países periféricos.

A resposta para a questão do início dessas grandes diferenças de riqueza e de domínio geopolítico entre os países está, ao menos em grande medida, ligada ao advento das Grandes Navegações (com seus complexos antecedentes culturais, econômicos e militares), que deu origem ao estabelecimento de colônias, com suas múltiplas e vastas consequências.

Com o advento das Grandes Navegações surge o Moderno Colonialismo, e com ele as lutas e guerras pelo domínio de colônias, bem como as competições comerciais (Mercantilismo) daí decorrentes. Posteriormente, mas como uma continuidade desses processos competitivos e de tantos conflitos armados, temos o advento das Revoluções Industriais que aumentaram cada vez mais o distanciamento entre os países colonizadores e as regiões colonizadas. Ou seja, alguns países passaram a exercer, pela força das armas e pela pujança econômica, um domínio geopolítico (cultural, econômico, militar e de outros tipos) sobre outros países ou regiões do planeta. Essas nações estabeleceram domínios (colônias), que serviram tanto como fontes de matérias primas abundantes e baratas, quanto como mercados consumidores cativos, inicialmente para os vários processos do Mercantilismo, e depois para a crescente industrialização das metrópoles.

Aqui no Brasil, por exemplo, havia leis durante o período colonial que proibiam o estabelecimento de vários tipos de manufaturas e qualquer tipo de indústria, coisa que só mudou a partir do momento em que a família real, expulsa de Portugal pelos exércitos de Napoleão, veio a se estabelecer por algum tempo no Brasil. A razão da existência dessas leis visava, é claro, garantir que a colônia (Brasil) permanecesse apenas como um fornecedor de matérias primas e como um mercado consumidor de produtos manufaturados e industrializados pela metrópole, ou comercializados através dela.

Concretamente, a história econômica dos últimos cinco séculos revela algo da maior importância que é o fato de que a diferença de riqueza entre as nações se ampliou de forma impressionante, através de um complexo processo de dominação que raramente é bem compreendido pelas pessoas em geral, mesmo aquelas com formação universitária. Para que se tenha uma ideia inicial da complexidade desse processo – o que em parte explica ser até nossos dias relativamente pouco compreendido e controverso – vejamos a seguinte citação do conhecido economista brasileiro Celso Furtado:

“O rápido e inusitado crescimento das forças produtivas que se conhece como revolução industrial é fenômeno que escapa a toda tentativa de explicação esquemática, e que somente pode ser compreendido no contexto da história europeia. Com efeito, as inovações que deram partida à revolução nas formas de produção, que se assinala a partir do último quartel do século XVIII, e permitiram a aceleração do processo de formação de capital, são uma resultante da convergência de múltiplos processos sociais, tais como a acumulação de capital comercial sob forma líquida – o que foi possível graças à expansão das atividades comerciais e à descoberta dos metais preciosos das Américas – a exacerbação da concorrência mercantilista decorrente da formação dos Estados nacionais europeus, o desenvolvimento das técnicas de organização mercantil e financeira, o acesso ao patrimônio de conhecimentos técnicos que se havia acumulado na Ásia. O desenvolvimento da ciência experimental, facilitado pela secularização do saber e pela difusão dos conhecimentos que acompanham a ascensão da burguesia, atuará como um mecanismo de multiplicação, cuja significação foi apenas indireta na fase inicial, mas que se tornará decisiva em fase subsequente, abrindo o caminho à revolução tecnológica a que fizemos referência.” [grifo nosso] (Celso Furtado, A Hegemonia dos Estados Unidos e o Subdesenvolvimento da América Latina, p. 9)

A compreensão dessas transformações, é claro, se trata de fundamental importância para a compreensão dos grandes problemas mundiais de nossos dias, bem como para a possibilidade de soluções consistentes para esses problemas.

Logo antes do início da Era Moderna, coincidindo com o período que antecedeu ao advento das Grandes Navegações (final da Idade Média), tem-se como um parâmetro genérico que o diferencial de riqueza entre as nações mais pobres e as nações mais ricas se situava algo em torno de trinta, ou no máximo cinquenta por cento (30 a 50%).

Ao longo dos últimos cinco ou seis séculos esse diferencial de riqueza foi aumentando de forma vertiginosa. Isso não ocorreu por acaso, como já dissemos, isso se deveu às múltiplas mudanças ocorridas sobretudo na Europa, nas quais devemos destacar os séculos de dominação colonialista, que é o aspecto geopolítico mais conhecido de um conjunto de transformações. Contudo, o que é menos conhecido é que, inicialmente, as transformações se deram sobretudo no campo das ideias, ou culturais (ideias religiosas, filosóficas, artísticas, científicas etc.) e, apenas posteriormente nas instituições socioeconômicas (políticas, econômicas, militares, educacionais etc).

Embora não tenhamos dados exatos sobre essas diferenças de riqueza entre as nações, apenas estimativas, cabe lembrar que foi pelo final da Idade Média que surgiu o maior império historicamente conhecido em extensão contínua de terras, o qual foi estabelecido pelos mongóis e seu grande chefe Temudjin, mais conhecido como Gengis Khan.

Esse fato é de grande relevância porque demonstra o pequeno distanciamento de riqueza e tecnologia que caracterizava esse período histórico anterior ao início das Grandes Navegações, ou início da Idade Moderna. De que outra maneira seria possível estabelecer o maior império em extensão de terras contínuas de todos os tempos basicamente montados em pequenos cavalos e tendo como principal armamento apenas potentes arcos curvos?

Seria possível imaginar o surgimento de algo desse tipo depois do advento dos trans-continentais impérios coloniais? Esses últimos já se estabeleceram com o surgimento de novos armamentos baseados na pólvora, nos canhões e nas armas leves de fogo, sem falar na expansão dos conhecimentos em geral (heliocentrismo, antropocentrismo, experimentalismo etc.) e das tecnologias de navegação em especial (bússola, cartografia, caravelas etc.). Sempre lembrando que além dos conhecimentos e instrumentos de navegação, como as caravelas e as bússolas, esses navios contavam com canhões! E, dentro da nova configuração geopolítica do mundo sob a hegemonia dos grandes impérios coloniais, as guerras com alguma chance de equilíbrio bélico se darão, a partir daí, entre os países cêntricos, e não mais entre os cêntricos e os periféricos, tamanha a diferença de riqueza e, consequentemente, de poderio bélico que passou a existir entre os países ricos e pobres, colonizadores e colonizados.

Apenas para corroborar a afirmação das pequenas diferenças de riqueza e poderio bélico existente entre as regiões do mundo já pelo final da Idade Média, vejamos alguns aspectos desse império estabelecido pelos mongóis e seu grande Khan:

“O Império Mongol é considerado o maior da história em extensão contínua de terras: chegou a abranger desde a fronteira oeste da Alemanha até a Península Coreana, e desde o Oceano Ártico até a Turquia e o Golfo Pérsico, dominando cerca de um terço da população total do planeta na época. Ele teve início em 1206, quando um guerreiro chamado Temudjin foi proclamado Gengis Khan, o soberano supremo da Mongólia. Utilizando-se de estratégias de guerra e política, o líder foi o responsável pela unificação das numerosas tribos nômades que habitavam a região e se assemelhavam pelos costumes e pela língua.

Após a unificação da Mongólia, o primeiro alvo de Gengis Khan foi a China. Munido de um exército hábil, organizado e disciplinado, atravessou a Grande Muralha e rendeu Pequim em 1215. Entre 1221 e 1225, em incessantes campanhas, os mongóis avançaram sobre os estados muçulmanos e se tornaram donos de um império que se estendia até o Golfo Pérsico. Mesmo depois da morte do líder, em 1227, as conquistas prosseguiram com seus sucessores, que continuaram expandindo o território pela Ásia muçulmana e pela Europa cristã. Os principados russos foram aniquilados em 1238 e a cidade de Kiev foi rendida em 1240. No mesmo ano, houve ataques à Polônia e à Hungria. As tropas também derrubaram Bagdá, em 1258. Até o final do século 13, os avanços prosseguiram principalmente pela China e pelo sudeste asiático.

Em resumo, os exércitos de Gengis Khan eram temidos em toda a Ásia. Seus soldados andavam a cavalo e lutavam com arco e flecha. Em 1215, os mongóis haviam tomado o norte da China. Quando Gengis Khan morreu, em 1227, os mongóis controlavam um território que ia da costa da China até a Rússia europeia.

Apesar de tantas e rápidas conquistas, o império não conseguiu manter uma unidade, acabou dividido em reinos e formalmente terminou em 1368, com a expulsão dos descendentes de Gengis Khan da China. Em relação ao legado para o mundo derivado desse império, destaca-se a rota da seda. As grandes rotas de comércio asiáticas da antiguidade puderam ser restauradas, dentre elas, a maior e mais famosa era a Estrada da Seda, que ligava a China ao Mar Mediterrâneo, sendo importante para o renascimento comercial da Europa.”
(https://novaescola.org.br/conteudo/2373/o-que-foi-o-imperio-mongol)


Cabe salientar que o Império  Mongol formalmente terminou somente em 1368, menos de um século antes do início da Idade Moderna (1453) e praticamente um século antes do início das Grandes Navegações! Também cabe lembrar que o espaço principal desse grande império foi em seguida ocupado pelos três impérios islâmicos chamados “Impérios da Pólvora”: o Império Turco Otomano, o Império Persa Iraniano (Safávidas), e o Império Grão Mongol. Esse último mais tarde foi sucedido pelo Império Mugal, iniciado por um parente longínquo de Gengis Khan. Esse império dominou boa parte da Índia, Paquistão e regiões adjacentes até meados do século XIX, quando os ingleses venceram o já decadente e diminuído Império Mugal.

Esse último fato é simbólico de toda a grande transformação do mundo durante esses séculos do Império Mugal (1526-1857) o qual no seu apogeu chegou a ser um dos impérios mais poderosos do mundo, e que no decurso de três séculos foi finalmente derrotado militarmente pelos ingleses, sendo, desse modo, um exemplo emblemático das imensas transformações ocorridas no mundo durante esses séculos.

Assim sendo, o primeiro ponto importante a compreender e enfatizar é o fato da pequena diferença de riqueza entre as nações e regiões do mundo, quando comparamos essa diferença de riqueza com a gigantesca diferença de riqueza entre as nações existente em nossos dias. Essa situação global (de relativa pequena diferença de riqueza) perdurou praticamente até o inicio da Idade Moderna, que tem como um de seus marcos, justamente, a tomada de Constantinopla pelos Otomanos, ou seja, o final do Império Romano Oriental (cristão).

Com isso em mente, tentemos agora analisar sinteticamente esse complexo processo de crescente distanciamento de riqueza e poder geopolítico entre as nações. Desde logo precisamos claramente compreender quais as razões desse processo ser tão controverso e mal compreendido até nossos dias, como podemos constatar na citação acima do conhecido economista Celso Furtado, onde lemos: “O rápido e inusitado crescimento das forças produtivas que se conhece como revolução industrial é fenômeno que escapa a toda tentativa de explicação esquemática.”

Essa dificuldade de uma clara “explicação esquemática” desse processo da maior importância para o entendimento dos grandes problemas mundiais de nossos dias reside em duas razões principais: 1) o domínio de filosofias e teorias materialistas (consideradas científicas) que, de fato, impedem uma clara compreensão de qualquer processo global de significativa transformação socioeconômica; e, 2) o desinteresse nessa questão de parte dos países cêntricos, amplamente hegemônicos não apenas em termos econômicos e militares, mas que são também, e sobretudo, hegemônicos em termos culturais (científicos, religiosos, artísticos etc.). De tal magnitude é esse domínio cultural que qualquer avanço cultural que aconteça na esfera dos países periféricos é, até nossos dias, vista com surpresa e estranhamento.

É interessante para a história do Humanitarismo, relacionado a esse aspecto do domínio cultural dos países cêntricos, um fato que ocorreu quando da primeira tentativa de criação do Partido Humanitarista no Brasil. Naqueles dias quando fomos visitados por agentes dos órgãos federais de informação, entre as várias questões que nos foram apresentadas, o ponto que causava maior suspeita e surpresa era que quando perguntados qual modelo de país servia como modelo para nosso partido, nossa resposta era de que se tratava de uma proposta nova, e que não estávamos copiando nenhum dos modelos existentes! Os pobres arapongas custaram a acreditar, mas depois de muita insistência disseram: “É, quem sabe está na hora de criarmos alguma coisa nossa…”!

Algo análogo, que não deve ser difícil imaginar, também ocorreu em minha dissertação de mestrado, ao criticar tanto os princípios do Liberalismo, quanto do Marxismo. O galardão dos que propõem mudanças ideacionais, como podemos ver em tantos  exemplos históricos, costuma ser bastante desagradável. “As paixões universitárias são mais acanhadas que as paixões políticas, mas não menos violentas”. (Maurice Duverger. Ciência Política: Teoria e Método)

Ainda quanto ao tema do domínio cultural, cabe lembrarmos de um exemplo histórico recente ocorrido na Índia, que é também um fato marcante para a história do Humanitarismo. Isso porque a Índia foi o país que mereceu uma proposta de Constituição feita sob a liderança da Dra. Annie Besant [como Presidente do All Parties Conference e National Convention, 1925, com participação de representantes do Home Rule Club e da India Women’s Association]; Proposta de Constituição para a Índia: The Commonwealth of India Bill (National Convention) [1925], e que, como diria Max Weber, trata-se de um “tipo ideal” para ilustrar a compreensão da dimensão avassaladora dessa hegemonia cultural. Esse fato muito ilustrativo é que a Índia, após lutar heroicamente contra o colonialismo inglês, quando finalmente alcançou sua libertação política, após o final da Segunda Guerra Mundial, foi buscar como modelo para suas grandes instituições políticas, por incrível e paradoxal que possa parecer, justamente nas instituições políticas inglesas!

Essa “miséria” ideacional dos líderes da Índia, tanto hindus quanto muçulmanos (que explica inclusive a trágica partição Índia-Paquistão), além de exemplificar esse avassalador domínio cultural, explica porque a Índia, depois de mais de 70 anos como nação politicamente independente, continua incapaz de se libertar da injustiça, da corrupção e da incompetência política e, portanto, de deixar de ser um país submetido a uma condição tão injusta e cruel para com seu povo. Depois de todas essas décadas a Índia continua um país muito pobre, corrupto e violento, mesmo sendo hoje uma potência nuclear. [O PIB per capita da Índia (2019) está ainda em US$ 2.100 (em termos nominais), e algo em torno de US$ 6.000 (PPC: em termos de paridade de poder de compra) – vide:
Listas de Todos os Países, PIB per capita (Nominal e PPC):
Nominal:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_pa%C3%ADses_por_PIB_nominal_per_capita]
PPC (paridade de poder de compra):
https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_pa%C3%ADses_por_PIB_(Paridade_do_Poder_de_Compra)_per_capita

Nesse link acima encontramos listas dos PIBs per capita de todos os países, o que é uma grande síntese reveladora do abismo que separa a riqueza dos países em nossos dias, o que deveria, por si só, ser uma comprovação dos equívocos das teses liberais, por mais dominantes que possam ser até o início da terceira década do século XXI!

Se nos libertarmos desses dois grandes impedimentos à compreensão desse processo de enorme distanciamento de riqueza entre as nações – coisa que até nossos dias é motivo de controvérsias, pelas duas razões apresentadas – então uma “explicação esquemática” não será tão difícil.

Inicialmente, como dissemos, sem a compreensão de que ideias regem o mundo nenhuma clara compreensão é possível dos grandes processos globais de transformação social. Nesse sentido, lato senso, devemos lembrar a tese de Max Weber de que sem as transformações culturais acontecidas na Europa no final da Idade Média e início da Idade Moderna não seria possível todo esse processo, que resultou no advento e domínio mundial do capitalismo liberal. Weber centra sua análise (correta até onde ela alcança) no papel da Reforma Protestante, em sua obra A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, como aspecto decisivo para o advento do capitalismo. Aqui precisamos ir um pouco além desse ponto, embora concordando com a importância de sua hipótese.

Precisamos ir além desse ponto no sentido de que as transformações ideacionais que levaram às chamadas Reformas do Cristianismo (Lutero, Calvino, Puritanismo etc.) começaram bem antes dessas reformas, as quais ocorreram já no período do Renascimento. E o Renascimento já foi resultado de transformações ideacionais (na Europa) que o antecederam de alguns séculos. Não seria possível o Renascimento sem os pensadores pré renascentistas. Aqui precisamos destacar no campo religioso os exemplos de Roger Bacon, Alberto Magno e Tomás de Aquino.

Cada um deles trouxe contribuições importantes dentro da Igreja Romana, levando na direção da necessidade de que as teses religiosas deveriam ser amparadas pela lógica, o que já foi uma grande transformação ideacional, implicando num movimento de retorno aos grandes clássicos da cultura ocidental, grega e latina. E também, pelo menos no caso de Roger Bacon, numa ênfase na importância da experimentação (além da lógica), o que o coloca como um genial precursor da ciência moderna, isso ainda no século XIII (anos 1.200), quando viveram esses três influentes pensadores.

Basta citar, no caso de Roger Bacon, o fato de que a esse religioso é atribuída a fórmula da pólvora, que embora conhecida desde muito tempo na China, ganha uma maior precisão na sua utilização. Como temos enfatizado, o maior domínio e utilização da pólvora é um dos antecedentes decisivos para toda a Idade Moderna e suas transformações, como no exemplo das Grandes Navegações.

Precisamos também mencionar as transformações na campo das artes, nos assim chamados “humanistas”, pré renascentistas. Da mesma forma devemos mencionar Gutenberg, com suas invenções do processo de impressão em massa de tipo móvel, utilização de tinta a base de óleo, sistema de prensa de madeira, e a combinação desses elementos em um sistema prático que permitiu a produção em massa de livros impressos, o primeiro dos quais foi a Bíblia de Gutenberg, publicada entre 1450-1455. Desnecessário seria dizer que se trata de outro desses pré condicionantes para as transformações da Idade Moderna e a disseminação de conhecimentos.

Outro fato, não muito enfatizado, ocorrido na Europa dos séculos XIII ao XVI trata-se da ocorrência da Peste, que dizimou grande parte da população europeia. Em algumas áreas, como em partes de reinos no que é hoje a Itália, chegando a reduzir a população em mais da metade (50%). Não deveria ser difícil de imaginar o impacto, em todos os sentidos e em todos os campos das atividades humanas, causado por um evento dessa magnitude.

Esse impacto, com a força de uma imensa catástrofe, naturalmente vai no sentido de um questionamento de todo status quo dominante na época. E não por acaso, foi justamente na região mais atingida pela Peste Negra – em termos de maior redução da população, que como dissemos foram regiões da Itália – onde ocorreu com maior ênfase o Renascimento. E também não deixa de ser um desses ícones desse período do início das Grandes Navegações a associação dos genoveses com os espanhóis, e o fato de que o primeiro comandante das naus espanholas a chegar no Novo Mundo era um genovês.

Finalmente, não é possível uma razoável “explicação esquemática” dos antecedentes da Idade Moderna sem uma compreensão da influência do Islamismo. O crescimento e as conquistas dos impérios islâmicos da época hoje exigem algum esforço para compreendermos o quanto influenciaram a Europa, não apenas porque bloquearam tradicionais rotas marítimas, como querem nos fazer crer as pobres análises materialistas (mesmo que academicamente dominantes) com suas teorias hiper economicistas, autoproclamadas de científicas.

Para nós da América Latina isso deveria ser óbvio, uma vez que somos em tão grande medida filhos da cultura ibérica, e a península ibérica foi durante séculos dominada, e em todos os sentidos influenciada, por califas islâmicos (invasão iniciada no séc. VIII e só terminada no séc. XV, um domínio, portanto, de cerca de 7 séculos).

Com esses fatores em mente, chegamos agora ao início da Idade Moderna, à  conquista otomana de Constantinopla (o fim do Império Romano Oriental, cristão, em 1453), ao Renascimento, ao início das Grandes Navegações, à Reforma Protestante iniciada pelo religioso Martinho Lutero (suas 95 Teses foram publicadas em 1517), aprofundada por João Calvino (Instituições da Religião Cristã, de 1536) cuja importância para o capitalismo e, portanto, para toda a formatação do mundo moderno foi abordada pela obra já mencionada de Max Weber.

Esse período de cerca de três séculos que antecedeu o início da Idade Moderna, a nosso ver, é o mais difícil de ser compreendido e o mais negligenciado pelas análises contemporâneas. Uma vez estando razoavelmente esclarecido esses vários fatores podemos compreender que, muito além do mero crescimento de cidades e do bloqueio de rotas marítimas, houve fatores ideacionais que atuaram no sentido de uma profunda transformação da Europa, o que levou a um afrouxamento da rigidez do pensamento medieval, com uma revalorização dos clássicos, com um crescente antropocentrismo, em detrimento do teocentrismo, que avançou pari passo com o heliocentrismo, em detrimento do geocentrismo, e com a consequente crescente afirmação da esfericidade da Terra.

Todo esses fatores conduzem ao avanço da defesa da liberdade pensamental, simultaneamente no campo religioso e no campo laico, com o consequente estímulo ao que hoje chamamos de método científico de validação do conhecimento, e a série de conhecimentos e de técnicas que passaram a ser dominadas, afetando todos os campos da atividade humana.

Sem a compreensão dessas mudanças ideacionais e suas consequências sinteticamente abordadas acima não seria possível nem as Grandes Navegações, nem as Reformas Protestantes, nem a crescente liberdade econômica, especialmente do comércio e das finanças (bastando aqui mencionar que o pensamento medieval dominante considerava a usura um pecado). Já com a compreensão dessas mudanças, podemos compreender como se tornou possível aquele “marco ideal” do início da Idade Moderna que é o início das Grandes Navegações. E, assim compreendendo, podemos agora (tendo em vista os limites dessa obra) apresentar uma “explicação esquemática” para o crescente diferencial de riqueza entre as nações e regiões do planeta.

Com o estabelecimento de colônias trans-continentais o mundo se torna definitivamente “redondo”, por assim dizer, fato que acelera as mudanças ideacionais já em curso, tendo aqui como marco não apenas a expansão do pensamento da Reforma Protestante, mas também do que hoje se denomina de metodologia científica, esfera na qual podemos tomar como “marco ideal” as obras de Francis Bacon (Da Proficiência e o Avanço do Conhecimento Divino e Humano (1605); Novo Organon: Istauratio Magna (1620), entre outras obras desse gênio).

A riqueza que aflui das colônias muda completamente o mapa geopolítico do planeta. Primeiro coloca os reinos ibéricos como o centro geopolítico global, despertando a cobiça dos demais reinos europeus os quais, de um lado, aqueles que podem, partem para obter novas colônias, e para várias guerras entre eles e, principalmente, com os reinos ibéricos, visando o domínio dessas colônias, ou partes delas. Sem entrar nos detalhes dessas várias guerras, quer no continente europeu, quer nas colônias, basta citarmos as várias invasões francesas e holandesas ocorridas nas costas brasileiras (ou seja, apenas nessa colônia lusitana).

Ao mesmo tempo e muito em decorrência desse afluxo de riquezas, em especial ouro e prata (mas também produtos comercializáveis de forma lucrativa em geral), se estabelece como hegemônico um pensamento econômico chamado de Mercantilismo, o qual assume diferentes contornos em diferentes regiões, mas que, fundamentalmente, preconiza que o enriquecimento dos reinos deve estar atrelado ao comércio exterior, que com uma balança comercial positiva faz com que a riqueza de uma nação (sobretudo concebida como ouro e prata) flua para a outra nação, o que, por outro lado, também permite ganhos de escala e encontrar saída aos excedentes da produção.

Naturalmente, nesse contexto, o Estado adquire um papel central no desenvolvimento da riqueza nacional, ao adotar políticas protecionistas e de aumento da competitividade da produção interna em geral, como medidas de aumento da qualidade da produção interna, bem como estabelecendo barreiras tarifárias e medidas de apoio à exportação. Isso, naturalmente, também estimula e acelera o estabelecimento de Estados nacionais mais fortes e coesos, sendo que os reinos que se adiantaram nesse sentido obtiveram grandes vantagens comerciais.

Mas o que mais nos interessa aqui é a noção, até hoje não muito clara, que esse processo de transformação política e econômica é que está na base tanto do início do enorme fosso de riqueza entre as nações (do assim chamado “desenvolvimento”), mas que também se constituiu no estímulo fundamental para as chamadas Revoluções Industriais, as quais claramente aceleram ainda mais o distanciamento de riqueza que tratamos de explicar esquematicamente. Nesse sentido, a partir desse ponto, podemos dispensar o esforço de criatividade e simplesmente trazer citações de uma obra de grande sucesso no campo do ensino desses processos, tendo merecido algumas revisões e muitas edições: A História da Riqueza do Homem, de Leo Huberman.

Mesmo que essa obra tenha uma matriz interpretativa muito materialista, essas citações nos parecem suficientes para mostrar como esse estímulo e proteção às manufaturas com qualidade/competitividade cada vez maior (visando os saldos positivos nas balanças comerciais), também operou no mesmo sentido para o estabelecimento e proteção das primeiras indústrias. Somente os títulos dos subcapítulos do capítulo 11 dessa obra – Ouro, Grandeza e Glória – já são uma síntese do início desse processo: O que Faz a Riqueza de um País? Acumulação de Tesouros. Estímulo à Indústria. Migração de Trabalhadores. Riqueza pelo Transporte Marítimo. Colônias. A Política Mercantilista.” 

Como dissemos antes, os reinos ibéricos se transformaram, devido à exploração das riquezas de suas colônias, ao longo dos séc. XVI e XVII, nos reinos mais ricos e poderosos do mundo. Vejamos então algumas citações (retiradas entre as páginas 109 e 120 dessa obra de Leo Huberman):

“Como os governos acreditavam na teoria mercantilista, baixaram-se leis proibindo a saída desses metais. (…) Tais medidas podiam conservar no país o ouro e a prata já existentes nele. E países que dispunham de minas dentro de suas fronteiras, ou que, como a Espanha, tinham a sorte de possuir colônias com ricas minas de ouro e prata, podiam aumentar constantemente suas reservas de metais. Mas como fariam os países que não dispunham de nenhum desses recursos? (…)

Para tais países, os mercantilistas ofereciam uma solução feliz. Uma ‘Balança de Comércio favorável’ era sua resposta. Que se entendia por ‘balança de comércio favorável’? Num trabalho de 1549, intitulado Polices to Reduce this Realm of England unto a Prosperous Wealth and Estate, encontramos a resposta: “A única maneira de fazer com que muito ouro seja trazido de outros reinos para o tesouro real é conseguir que grande quantidade de nossos produtos seja levada anualmente além dos mares e menor quantidade de seus produtos seja para cá transportada’’ (…)

Os países poderiam aumentar sua reserva de ouro dedicando-se ao comércio exterior – diziam os mercantilistas – tendo sempre a cautela de vender aos outros mais do que deles comprar. A diferença no valor de suas exportações, em relação às importações, teria de ser paga em metal. (…)

O negócio, portanto, era exportar mercadorias de valor e importar apenas o que fosse necessário, recebendo o saldo em dinheiro sonante. Isso significa estimular a indústria [inicialmente artes e manufaturas] por todos os meios possíveis, porque seus produtos valiam mais que os da agricultura, e portanto obteriam mais dinheiro nos mercados estrangeiros. E o que era também importante, produzindo os bens de que o povo precisava equivalia a não ser necessário comprá-los do estrangeiro. Era um passo na direção da balança de comércio favorável, bem como no sentido de tornar o país autossuficiente, independente de outros países. (…)

Houve, por exemplo, prêmios dados pelo governo pelos produtos manufaturados para exportação. (…) Os prêmios governamentais sobre a produção destinavam-se a estimular a manufatura. O mesmo ocorre com a tarifa protetora. Essa tarifa, cuja finalidade foi proteger as indústrias nascentes e ainda na ‘infância’, é um recurso tão antigo como os mercantilistas, provavelmente mais velho ainda. (…)

Não só se estimulava a indústria pelos prêmios e pelas tarifas elevadas, como também se procurava, de todos os modos possíveis, atrair os trabalhadores estrangeiros habilidosos, capazes de introduzir no país novos ofícios ou novos métodos. Eram eles tentados com privilégios como a isenção de impostos, moradia de graça, monopólio por determinado número de anos no ramo a que se dedicassem, ou empréstimos de capital para adquirir o equipamento necessário. Quando não podiam ser induzidos a mudar de país voluntariamente, os governos costumavam recorrer à prática do rapto. (…)

Certos países não só concediam o monopólio de inventos, como também ofereciam prêmios aos que se dedicassem ao estudo de fomentar a indústria pela descoberta de métodos novos e melhores. Na França, Colbert organizou institutos de educação técnica, mantidos pelo Estado, bem como fábricas administradas também pelo Estado.

Na Baviera, em fins do séc. XVI, as fábricas estatais de tecidos empregavam dois mil operários. Tais fábricas deviam servir de modelo, inspiração, laboratório. Era nessas empresas em grande escala, não sujeitas a restrições das corporações, que se podiam realizar livremente experiências e progressos, difíceis para o artesão isolado. (…)

E o Estado estava sempre pronto a estimular a indústria, subsidiando-a diretamente ou de qualquer um dos modos já mencionados. As indústrias têxteis francesas, quando Colbert estava no governo, receberam cerca de oito milhões de libras de subsídios, de um tipo ou de outro. A um grupo que pretendia fundar uma fábrica para manufatura de seda e tecido de ouro e prata, na França do séc. XVII, o governo concedeu muitos privilégios de valor, bem como ajuda direta em dinheiro: “Um dos principais meios para atingir essa finalidade [o bem estar comum de nossos súditos] é o estabelecimento de artes e manufaturas, com a esperança de que proporcionem enriquecimento e progresso a esse reino, para que não tenhamos mais que procurar nosso vizinhos como se fôssemos mendigos … buscando aquilo que não temos, e também porque é um meio fácil e bom de limparmos nosso reino dos vícios da ociosidade [desemprego], e a única forma pela qual deixarmos de ter de mandar para fora do reino o ouro e a prata para enriquecer nossos vizinhos (…).” [Recueil Géneral, vol. 15, pp. 283-7]

Esse edito apresenta outra vantagem ressaltada pelos mercantilistas em seus argumentos a favor do fomento da indústria. Assinalam continuamente que o crescimento da indústria não só representava um aumento nas exportações, que por sua vez ajudava uma balança comercial favorável, mas também provocava aumento no emprego. T. Manley, escrevendo em 1677, dizia que “uma libra de lã, manufaturada e exportada, é mais interessante para nós, porque emprega nossa gente, do que dez libras exportadas em bruto por duas vezes o preço atual.” [T. Manley, A Discourse Showing that the Exportation of Wool is Destructive to this Kingdom. London, 1677]” [NA: Vários grifos acima são nossos]

Ora, num período em que, por conta de todas essas transformações da ordem medieval, os mendigos e desempregados constituíam sério problema e custavam boas somas na assistência social, tal argumento tinha valor considerável. Cabe nos perguntarmos se isso mudou muito desde aquela época até nossos dias? Mas continuemos um pouco mais com Leo Huberman e A História da Riqueza do Homem:

“Portanto, a indústria que lhes desse emprego devia ser estimulada. Dedicou-se também grande atenção à produção de cereais, para assegurar alimentos ao povo, para que estivesse forte – quando chegasse a guerra. (…)

Combatentes. Tempos de guerra. Quem pensasse nesses termos naturalmente se preocuparia com o número e a qualidade dos navios, necessários tanto para defender a pátria como para atacar o inimigo. E assim como julgavam que o fomento da indústria era vital para uma balança de pagamentos favorável, os mercantilistas também consideravam essencial a construção de uma marinha mercante, pelo mesmo motivo. Os governos davam ênfase à importância de recursos marítimos adequados para transportar seus produtos industriais a outros países. Voltavam sua atenção, portanto, para o estímulo à navegação com o mesmo zelo demonstrado no fomento à indústria. (…)

As Leis de Navegação inglesas, tão famosas, tinham como um dos objetivos principais tomar dos holandeses o controle dos serviços de transportes marítimos. Esse objetivo é evidente numa das leis, datada de 1660, que diz: “Fica estipulado … que a partir de primeiro de dezembro de 1660…  nenhum artigo ou mercadoria de qualquer espécie será importado ou exportado de nossas terras … na Ásia, África ou América, em qualquer outro navio de qualquer tipo, mas somente nos navios que realmente e sem fraude pertenceram ao povo da Inglaterra … como verdadeiros proprietários, e dos quais o mestre e três quartos dos marinheiros pelo menos sejam ingleses.” [Bland, Brown e Tawney, op. cit, pp. 670-1]

Mas havia outros aspectos das Leis de Navegação que não eram vantajosos para as colônias. Fazia parte do pensamento mercantilista a crença de que as colônias eram outra fonte de renda para a metrópole.

Baixaram-se leis, portanto, proibindo aos colonos iniciar qualquer indústria que pudesse competir com a indústria da metrópole. Os colonos não podiam fabricar gorros, chapéus ou artigos de lã ou ferro. A matéria prima desses produtos existia na América, mas os colonos deviam mandá-la para a Inglaterra, onde seria beneficiada, e comprá-la de volta na forma de produtos acabados. Essa a atitude da Inglaterra – não apenas para com a América, mas com todas as suas colônias. (…)

Certos produtos americanos, como tabaco, anil, mastros, terebintina, alcatrão, piche, pelo de castor, ferro em bruto (a lista aumentava com o tempo), tinham que ser enviados apenas para a Inglaterra. Os ingleses desejavam tais coisas para si, para suas indústrias. E quando não podiam consumi-las, reexportavam – com lucros. (…)

A chave para compreender o atrito surgido entre a metrópole e as colônias está no fato de que enquanto a metrópole julgava que as colônias existiam para ela, estas julgavam que existiam para si mesmas. Sir Francis Bernard, governador real de Massachusetts, deixou bem clara a noção da relação entre metrópole e colônias: “Os dois grandes objetivos da Grã-Bretanha em relação ao comércio americano devem ser: 1) obrigar seus súditos americanos a comprar apenas na Grã-Bretanha todas as manufaturas e mercadorias europeias que ela lhes puder fornecer; 2) regular o comércio exterior dos americanos de tal forma que os lucros dele oriundos se centralizem finalmente na Grã-Bretanha, ou sejam aplicados à melhoria de seu próprio império.” [Citado por Challes e Mary Beard, The Rise of American Civilization. New York, The Macmillan Company, 1933, vol. I, p. 115. (os grifos são do original de Leo Huberman)]

Eis uma afirmação clara de que as colônia existiam apenas para ajudar a metrópole em sua luta pela riqueza e pelo poderio nacional. O que ocorria não só com a Inglaterra, mas na França, na Espanha, em todas as metrópoles que eram mercantilistas. É importante lembrar isso. (…)

Colbert escreveu a M. Pomponne, embaixador francês em Haia, em 1670: “Como o comércio e a manufatura não podem diminuir na Holanda sem passar às mãos de algum outro país … não há nada mais importante e necessário para o bem geral do Estado que, ao mesmo tempo em que vemos crescer nosso comércio e indústria dentro do nosso reino, vejamos também sua diminuição real e efetiva nos Estados da Holanda.” [A.J. Sargent, Policy of Colbert. London, Longmans, Green and Co., 1899. pp. 78-9]

Vemos que a crença de que “não há nada mais importante e necessário para o bem geral do Estado” do que a redução do comércio e indústria de um Estado rival só poderia levar a uma coisa: guerra. O fruto da política mercantilista é a guerra. A luta pelos mercados, pelas colônias – tudo isso mergulhou nações rivais numa guerra após a outra. Algumas foram travadas como guerra comerciais. O objetivo de outras foi disfarçado com nomes pomposos, como acontece ainda hoje. Mas dizia o Arcebispo de Canterbury, em 1690, que “em todas as lutas e disputas que nos últimos anos ocorreram nesta parte do mundo, julgo que, embora alegassem objetivos altos e espirituais, o fim e o objetivo verdadeiro era o ouro, a grandeza e a glória secular”. [Citado em C.J.H. Hayes, Essays on Nationalism, pp. 37. New York, The Macmillan Company, 1926. (Citações acima, de A História da Riqueza do Homem, pp. 109-120; grifos nossos)

Será que houve mudanças essenciais quanto a esses fins e objetivos verdadeiros nos últimos três séculos? Será que em essência mudaram os fins e os objetivos que norteiam e moldam os sistemas políticos hoje dominantes, isto é, o modelo civilizatório ocidental do cientificismo hoje dominante, e as guerras por competitividade econômica e domínio geopolítico da globalização de nossos dias?

Esperamos que com essa “explicação esquemática” tenha ajudado a esclarecer o início do processo que gerou o abismo de riqueza entre as nações hoje existente.

A primeira etapa desse processo, portanto, foi de simples rapinagem colonial-mercantilista. Essa etapa já aumentou marcantemente a diferença de riqueza entre as nações. A seguir, temos uma etapa de aprofundamento desse diferencial de riqueza graças ao advento das Revoluções Industriais, com as metrópoles se firmando como zonas industrializadas de ponta, enquanto que as colônias se restringiam (até porque eram obrigadas a isso) a serem zonas fornecedoras de matérias primas e consumidoras de bens industrializados. Ou seja, a rapinagem agora passou a incluir o diferencial obtido graças ao valor agregado aos produtos industrializados, em comparação ao pequeno valor agregado aos bens primários em geral.

Dizemos “rapinagem”, mesmo para esse diferencial gerado pela industrialização, porque não podemos deixar de perceber que todo esse processo se desenvolveu (por um longo período) enquanto o mundo ainda se caracterizava pela dicotomia da existência de nações colonizadoras e nações colonizadas. E que foi somente no início da industrialização moderna (chamada Primeira Revolução Industrial) que o pensamento econômico liberal, de apologia da livre concorrência, ou da liberdade de comércio internacional, passou a ser pouco a pouco dominante.

No início desse processo essa liberdade, que depois passou a ser o pensamento dominante (como é até nossos dias) era algo muito restrito às empresas (comerciais e industriais) dos países colonizadores. Como já dissemos, durante séculos, por exemplo, o estabelecimento de indústrias no Brasil colônia era proibido.

Qual é o resultado concreto desses séculos de colonialismo e neocolonialismo? O diferencial de riqueza, entre as nações mais ricas e mais pobres, que no início do período em foco era de trinta, ou no máximo cinquenta por cento (um múltiplo de 1,3 ou 1,5), desde o final do século XX está na ordem de bem mais de mil por cento. Assim, hipoteticamente, se a diferença da riqueza (entre os mais ricos e os mais pobres) era da ordem de mil para mil e quinhentos (50%), hoje esse diferencial está, aproximadamente, em termos de PIB per capita, na ordem de mil dólares para cinquenta mil dólares (ou seja, algo próximo de 5.000%)! Vide:
Listas de Todos os Países, PIB per capita (Nominal e PPC):
Nominal:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_pa%C3%ADses_por_PIB_nominal_per_capita]
PPC (paridade de poder de compra):
https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_pa%C3%ADses_por_PIB_(Paridade_do_Poder_de_Compra)_per_capita


A Industrialização e a Geração do Valor Agregado

Por que isso é tão importante? Precisamos perceber claramente que, a menos que um país possua excepcionais riquezas naturais (por exemplo, os países que possuem muito petróleo em seu território, ou uma população pequena em relação a uma dimensão territorial muito grande), não existe outra maneira de alcançar-se o patamar de riqueza atingido pelas nações mais ricas do planeta senão através de um intensivo processo de industrialização.

Isso porque a cada vez que uma dada matéria prima passa por um processo de transformação industrial de qualquer tipo é agregado a ela um valor adicional que inclui o ganho com o lucro obtido nesse processo de transformação. Em economia dá-se o nome de “valor agregado” a esse diferencial obtido em cada momento de transformação do processo produtivo. A industrialização permite, portanto, a geração de uma estrutura econômica muito mais complexa, com mais etapas de transformação no processo produtivo, sendo que a cada uma dessas etapas mais valor é adicionado.

Essa maior complexificação industrial gera vários efeitos positivos quanto à geração de maiores riquezas. Por exemplo, gera uma taxa de ocupação maior da força de trabalho; gera uma complementação inter-industrial que permite processos produtivos com um número cada vez maior de etapas de transformação; gera a necessidade da complementação de uma gama muito ampla de serviços de todo o tipo; e essa complementação entre os setores da agricultura e da exploração de outras matérias primas, da indústria e dos serviços e comércio gera ganhos de produtividade impressionantes, sobretudo, através da crescente mecanização dos processos produtivos de todo tipo, bem como dos ganhos de escala que essa maior complexidade industrial viabiliza.

Ora, esse processo, globalmente considerado, ocorreu primeiro em algumas nações e graças, principalmente, às vantagens obtidas sobre as outras, a ferro e a fogo, através da dominação colonialista. Quando esse processo já estava bastante avançado, então o discurso dominante passou a ser diferente, e a filosofia puramente mercantilista passou a ser substituída pela filosofia liberal.

Em sentido lato, foi o avanço desse processo de domínio e competição entre as nações que levou o mundo a duas grandes Guerras Mundiais (que, no fundo, foram guerras entre nações ricas pela disputa de espaços coloniais ou neocoloniais), bem como ao presente período e à atual forma de globalização econômica caracterizado pela “livre” competição internacional, ou seja, pela “guerra” de todos contra todos pela lucratividade, competitividade econômica e pelo ganhos mercantis daí decorrentes.


A Relativa e Conveniente “Liberdade” Econômica

Essa ampla e “livre” globalização econômica, ou seja, essa “guerra” com as armas da “modernização” (produtividade, agregação de valor, competitividade etc.) se caracteriza por alguns aspectos ilusórios e muito perversos.

Primeiro, a dita “liberdade” vale apenas para alguns fatores econômicos, isto é, vale de um modo geral para os produtos primários, produtos industrializados, inclusive máquinas, e para os serviços. Mas, não vale para o fator trabalho. Esse fator econômico não goza da liberdade de deslocar-se à vontade. Isso, evidentemente, visa garantir que as vantagens obtidas por alguns, não sejam ameaçadas por movimentos migratórios em busca de melhores salários, oportunidades de emprego etc. A liberdade que caracteriza a forma atual de globalização e sua “guerra” pela “modernização” (competitividade etc.), portanto, é muito mais interessante para os países ricos do que para os países pobres.

Em segundo lugar, essa liberdade seletiva (que existe apenas para determinados fatores econômicos) inerente à atual forma de globalização e “modernização”, é um processo do tipo “raposa dentro do galinheiro”. Vejamos se não é bem o caso. Como vimos, trata-se de uma luta por produtividade etc., entre competidores que não partiram em condições de igualdade, uma vez que não podemos ignorar o período anterior a esse atual, que foi um período de séculos de exploração colonialista e neocolonialista.

Hoje, portanto, a competição se estabelece entre forças muito desiguais e num jogo de “guerra” como esse, no qual o que pode mais sofre menos, essa liberdade seletiva apenas tende a manter as diferenças iniciais, e muitas vezes até mesmo a acentuá-las, o que caracteriza claramente um processo no qual os mais fracos não têm chance alguma de vitória. Vemos, portanto, que essa liberdade é como a liberdade da raposa dentro do galinheiro, muito interessante apenas para um dos lados.


A Finitude dos Recursos Naturais

Até mesmo do ponto de vista meramente relacionado ao consumo das principais matérias primas é possível perceber que os mais pobres jamais poderão alcançar, dentro das atuais regras do jogo, o padrão de riqueza alcançado pelos mais ricos. Apenas para citar um exemplo conhecido, examinemos uma projeção do nível de consumo per capita de petróleo para a população mundial. Matéria prima que ainda hoje é uma fonte indispensável de geração energia, bem como insumo necessário a muitas cadeias produtivas (produtos químicos, plásticos etc.).

Se levarmos em conta o consumo médio per capita dos EUA, do Canadá, ou mesmo da Alemanha e do Japão, que são exemplos de países ricos, o que aconteceria? Essa questão não é nem um pouco absurda, uma vez que se imaginamos que os países pobres devem imitar o exemplo dos países ricos, então esses também desenvolverão um padrão de consumo e uma matriz energética bastante parecidos. Nesse caso, aconteceria que todas as reservas conhecidas de petróleo seriam consumidas em pouco mais de seis anos, segundo os dados da “British Petroleum”. (BP – Statistical Review of World Energy, 06/85 e 06/87).

Examinemos um pouco esses dados. As reservas mundiais de petróleo seriam de 95.200 milhões de TEP’s (toneladas equivalentes de petróleo). A população dos EUA era de cerca de 250 milhões e seu consumo em 1986 foi de cerca de 750 milhões de TEP’s. Enquanto sua população era cerca de vinte vezes menor do que a população mundial, seu consumo de petróleo era apenas quatro vezes menor que o consumo mundial, que em 1986 era de cerca de 3.000 milhões de TEP’s.

Portanto, se projetamos seu consumo per capita (750 dividido por 250 = 3), para toda a população mundial que na época era cerca de 5.000 milhões (cinco bilhões) de pessoas, teremos um consumo mundial cinco vezes maior, ou seja, de 15.000 milhões de TEP’s. Ora, dividindo as reservas mundiais pelo que seria o consumo mundial (95.200 por 15.000 = 6,3) vemos que em pouco mais de seis anos teríamos esgotado as reservas mundiais conhecidas na época.

Assim sendo, mesmo que esses dados possam ser reavaliados, e que as reservas a serem descobertas dobrassem, isso nos daria um horizonte de apenas doze anos, o que não mudaria muito o panorama que queremos demonstrar. Ou seja, que obviamente não é possível que todos os países pobres reproduzam o padrão de desenvolvimento e riqueza dos países ricos. Isso é uma impossibilidade material, pura e simplesmente, tanto em relação ao petróleo como a outras matérias primas.

Desse modo, mesmo por esse ângulo, podemos ver que a atual liberdade do comércio internacional, e a modernização que “deu certo” para os países ricos não tem a menor chance de dar igualmente “certo” para os países pobres nos quais, é sempre bom lembrar, vivem duas terças partes da população mundial. No entanto, a maioria das pessoas, mesmo entre aquelas com formação universitária, não tem conhecimento desses duros fatos da realidade mundial.


“Dar Certo” Por Meio da Exploração

Assim sendo, muitos países que são exemplos de lugares onde o modelo liberal “deu certo”, estabeleceram uma prosperidade que só se tornou possível à custa da miséria de grande parte da população mundial. Mais ainda, continuam “dando certo” à custa de formas neocolonialistas de exploração, as quais lhes garantem uma vitória na “guerra” ou, como dissemos, na “corrida” da produtividade e lucratividade (via agregação de valor, competitividade etc.), que garante a manutenção desse estado de coisas tão injusto.

Muitas pessoas, em vista dessas condições gerais, afirmam que o Brasil é um país que ainda pode “dar certo”, ou um país de “futuro”. Isso porque devido aos seus recursos naturais, suas dimensões territoriais etc., o Brasil poderia ser uma espécie de último vagão no trem dos países que se beneficiam da exploração dos demais. Mesmo que isso fosse verdade, deveríamos chamar a isso de “dar certo”?

Isto é, estabelecermos um belo nível de vida à custa da miséria da Bolívia, do Paraguai etc.? Podemos chamar a isso “dar certo” se quisermos, mas não podemos deixar de reconhecer que do ponto de vista do bem-estar da humanidade como um todo, esse é um modelo fracassado, que implica na impossibilidade de uma solução global para o problema do dito subdesenvolvimento (entre outros grandes problemas mundiais) e, portanto, implica em uma imoralidade imensa.

Estando claro, desse modo, como se deu a origem do enorme diferencial de riqueza entre as nações, e como esse quadro de exclusão e injustiça se perpetua, podemos agora perceber que, especialmente no que diz respeito às possibilidades de superação da miséria dos países pobres (dentro de um cenário como esse) fica ainda mais evidente o fracasso das atuais formas dos modelos liberais (e também dos marxistas, como vimos).

Um sistema de organização sociopolítica como o dos atuais modelos das plutodemagogicracias liberais (como temos hoje no Brasil), se caracteriza por um péssimo processo de escolha dos governantes e pela fraqueza e pequena capacidade de coerção (ou força política) desses dirigentes. Esse modelo implica, na melhor das hipóteses, a manutenção do atual estado de coisas. Em vista disso, não é de surpreender que os países ricos o considerem tão interessante.


A Necessidade de um Novo Modelo Sociopolítico

O mundo como um todo e, sobretudo, os países pobres têm como sua única esperança o advento de novas instituições, principalmente instituições políticas (a partir das quais são escolhidos os dirigentes, legisladores etc.), ou seja, no advento de um novo modelo político, o qual, como vimos, depende de ideias metafísicas e éticas verdadeiras.  Modelo esse que garanta a seleção de governantes moralmente confiáveis e tecnicamente competentes, bem como que garanta a esses governantes uma grande capacidade de coerção ou força política. Essa grande força política é necessária a fim de que esses dirigentes possam controlar, disciplinar e harmonizar, em prol do bem-estar coletivo, o poder das gigantescas organizações. Capacidade essa que só poderá advir, de forma natural e benigna, através de uma boa organização de toda a população.


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