Índice da Obra     Anterior: 5 – Falhas dos Atuais Modelos da Democracia Liberal     Seguinte: 7 – Problemas Mundiais e Modelos Políticos Dominantes


6 – FALHAS DO MARXISMO: PREMISSAS E MODELO DE ORGANIZAÇÃO

Qual a visão de ser humano que nucleia a filosofia social do Marxismo? A consciência humana é vista nessa corrente filosófica como resultado do entrechoque dialético de forças materiais, sobretudo aquelas forças relacionadas às formas de produção e distribuição dos bens econômicos.

Em seu materialismo dialético e historicista, Marx pretende ter descoberto a lei do conflito dialético (tese, antítese e síntese) ligada às disputas pelos bens econômicos, a qual explicaria todo o desenvolvimento material (a estrutura), bem como todo o desenvolvimento psico-espiritual, ou seja, intelectual, jurídico, filosófico-religioso etc. (a superestrutura) da humanidade.


A Lei do Conflito Fundamental

Essa lei pode ser resumida como o conflito existente em todas as sociedades históricas (exceto num suposto comunismo primitivo) entre exploradores (tese) e explorados (antítese), ricos e pobres, dominadores e dominados. Esse conflito sempre tem como resultante uma nova síntese, a qual determina um novo padrão de exploração, que passa a se constituir em uma nova tese, gerando uma nova antítese e assim por diante.

Em nosso momento histórico, do capitalismo, esse conflito dá-se centralmente entre a classe detentora dos bens e equipamentos de produção econômica (os capitalistas, ou a burguesia) e a classe trabalhadora (proletários), que possui apenas a sua força de trabalho.

Esse conflito fundamental é que, em resumo, geraria e explicaria a enorme diferenciação existente quanto ao nível de abrangência das consciências. Os explorados devido à pobreza, à ignorância e ainda à cultura dominante, que surge para justificar essa exploração (cultura essa chamada por Marx de “ideologia”), tornam-se alienados ou inconscientes de seus direitos e possibilidades de desenvolvimento. Os exploradores, devido à riqueza e à educação, que lhes confere um maior descortino e abrangência mental, reproduzem as formações culturais que justificam a exploração, isto é, as visões de mundo ideológicas.


A Consciência Determinada Pelo Meio Material

Mas, ao contrário do Liberalismo que vê o homem com uma desconfiança fundamental (pelo menos em suas origens, quando foram formatadas suas principais instituições, como os três poderes, numa ordem de contra pesos), o Marxismo é uma corrente filosófica que vê o ser humano através de um certo tipo de otimismo fundamental. Isto porque o Marxismo defende a premissa de que essa diferenciação entre exploração e alienação, que caracteriza a consciência da humanidade até os nossos dias, trata-se apenas de um período na evolução da espécie humana (definido como “pré-história” da humanidade), uma etapa da evolução humana que, segundo Marx, estaria chegando ao seu final.

Desse modo, devido ao avanço e à complexificação cada vez maior (industrialização, urbanização, revoluções científicas e técnicas etc.), desencadeados pelo modo de produção econômica característico do capitalismo, a exploração estaria chegando a um máximo, e se tornando cada vez mais aparente. Marx afirma, fiel aos seus pressupostos, que os seus próprios estudos (os quais identificaram essa lei mestra, do conflito dialético-material-econômico, que explicaria a alienação etc.) já foram frutos do desenvolvimento material do modo de produção característico dessa época.

Assim sendo, o Marxismo acredita que está chegando o momento evolutivo no qual os explorados, que são a maioria, estão se conscientizando dessa exploração, e que através de suas organizações (elas mesmas resultado dessa nova consciência social), imporão uma nova ordem, não mais baseada na propriedade privada dos bens de produção e, portanto, na exploração, mas sim na socialização desses bens de produção.

Esse período de transição implicaria, segundo Marx, no uso da força, e num regime temporariamente ditatorial (a ditadura da classe operária). Outros autores, reformadores do pensamento Marxista original, acreditam que essa transição pode, ou até mesmo deve, se dar dentro dos processos eleitorais típicos das democracias liberais. Mas isso não muda a essência dessa corrente filosófica, e por isso se definem ainda como Marxistas, ou neomarxistas.

No entanto, o mais importante é que, passado esse período de transição, feitas essas transformações e superada a exploração, as enormes diferenças de abrangência cognitiva, ou conceitual, das consciências humanas desapareceriam quase que completamente. Então, todos os seres humanos em pleno gozo de suas faculdades mentais se tornariam muito conscientes em termos sociais, atingindo-se uma grande igualdade quanto aos níveis de abrangência conceitual. Marx chega a afirmar que numa sociedade comunista, caso a hierarquia fosse necessária, os cargos poderiam até mesmo ser preenchidos por sorteio aleatório.

Adviria daí um novo período, que Marx chama de a verdadeira “história” da humanidade, posto que o ser humano agora, pela primeira vez, estaria consciente e senhor das leis que determinam e constroem a sua história.

Nesse novo período, como dissemos, haveria uma grande igualdade econômica. Os bens econômicos necessários estariam acessíveis a todos, de forma livre e comum – daí o termo “comunismo”. Consequentemente, surgiria uma grande similaridade no alcance da consciência social dos indivíduos. Restariam apenas as diferenças de tipos psicológicos, temperamentos etc., mas não mais uma grande diferenciação de níveis de abrangência na consciência social dos indivíduos, uma vez que o fenômeno da alienação teria deixado de existir.


O Ser Humano no Marxismo

O homem no Marxismo, ao contrário do Liberalismo, não é visto como um ser basicamente egoísta. Ele é um ser que está em vias de superar para sempre a exploração (o egoísmo cruel), bem como a sua contrapartida que é a alienação. O ser humano é assim potencialmente bom, desde que as circunstâncias ou o meio ambiente social sejam bons, uma vez que a sua consciência é fruto do ambiente material que a engendra.

Por isso classificamos o Marxismo como uma perspectiva de certo modo otimista. Mas, em comum com o Liberalismo, essa corrente filosófica também percebe a espécie humana dentro de uma visão igualitarista.

No Liberalismo, embora basicamente egocêntricos, os seres humanos teriam capacidades muito semelhantes. Já no Marxismo, esse igualitarismo não diz respeito à situação atual, mas sim em termos potenciais. Isto porque, no momento atual, a existência de grandes diferenças de níveis de consciência social seria o resultado da exploração. Não obstante isso, potencialmente, todos os seres humanos seriam similarmente capazes. É tão somente o atual meio histórico-material (caracterizado pela exploração capitalista) que ainda não permitiria que essa igualdade se manifestasse.

Forçando um pouco a comparação, apenas para auxiliar a compreensão, podemos dizer que o Liberalismo “nivela a humanidade por baixo” (“o homem é lobo do homem”), e o ser humano, portanto, é visto sempre como basicamente dentro de um padrão egoístico. Enquanto que o Marxismo, em termos potenciais, “nivela a humanidade por cima”, na medida em que acredita que tão logo se transforme o meio histórico-material, mediante a socialização dos meios de produção, todos os seres humanos verão suas consciências superarem a alienação, gerando uma ampla e universal consciência de cidadania.


A Ética Marxista

Não é necessário avançarmos mais, nessa obra sintética, no exame dos fundamentos do Marxismo. Dados esses fundamentos que já examinamos sobre a consciência humana, os demais aspectos da construção social seguem logicamente, como meras consequências. Do mesmo modo que o Liberalismo, também o Marxismo é uma construção lógica, e dificilmente poderia não ser assim numa época de predomínio da lógica cientificista. E assim, seus métodos de ação, suas concepções éticas e de deveres, bem como seus modelos de organização social, derivam-se logicamente de suas premissas fundamentais.

Da mesma forma que no caso do Liberalismo, o Marxismo também deu origem a uma ética, a valores morais coerentes com suas premissas filosóficas materialistas e igualitaristas, bem como a uma estratégia de transformação social. Na verdade, no que diz respeito a alguns aspectos, trata-se de uma ética tanto ou mais cruel que a ética utilitarista, e a consequente excludência social que caracterizam o Liberalismo. Isso porque, sendo a consciência considerada como fruto do meio ambiente material, todas as maneiras de se alcançar um ambiente material livre da exploração de uma classe sobre a outra tendem a ser justificadas.

A partir daí legitima-se a aplicação dos métodos mais violentos de transformação social. Os horrores gerados pelo regime soviético, e por outros países que adotaram um modelo Marxista, são hoje conhecidos e dispensam maiores comentários, mas podem ser sinteticamente considerados como sendo frutos de uma ética do tipo “os fins justificam os meios”. Examinemos agora, ainda que brevemente, o principal modelo de organização política diretamente derivado dessa corrente de pensamento, que é aquele da ditadura do proletariado e seu centralismo democrático.


O Modelo Marxista: Virtudes e Falhas

O principal modelo de organização social derivado das premissas filosóficas do Marxismo é uma ordem totalitária, muito pouco flexível, que exclui da disputa política partidos e candidatos que não apoiem esse modelo. Geralmente temos um quadro de partido único, ou pelo menos de um partido ampla e inflexivelmente dominante, como podemos observar ainda hoje, por exemplo, na China ou em Cuba.

Ali o sistema de representação, ou de escolha das chefias políticas, o qual se dá dentro do partido único, não segue a norma das eleições de grandes massas, como nas democracias liberais, porém ocorre através de um sistema do tipo piramidal, também conhecido na ciência política como sistema do tipo “cascata”, ou “árvore invertida”.

Nesse sistema a representação política ocorre escalonadamente, em sucessivos níveis de crescente abrangência geográfica. Assim, a representação começa em pequena escala, com a eleição de representantes em uma “célula”, que é o primeiro nível de organização, o qual corresponde a um local de trabalho (uma fábrica, por exemplo), ou uma pequena circunscrição geográfica. A representação segue a partir daí, indiretamente, através de outros níveis de abrangência geográfica cada vez maiores (seções, federações, ou denominações análogas), até chegar a um conselho superior da república, isto é, um Congresso Nacional. O qual por sua vez escolhe um Comitê Central, que designa um Secretariado e outras comissões que se fizerem necessárias às funções governamentais de maior responsabilidade política do Estado.

Do mesmo modo que procedemos ao analisar o modelo Liberal, vejamos agora como o modelo Marxista responde às necessidades essenciais de um processo justo e competente de escolha dos dirigentes, que são: 1) liberdade, 2) igualdade de condições na disputa política e, 3) adequação entre os níveis de responsabilidade política e os níveis de compreensão ou de capacidades dos indivíduos. Em segundo lugar, vejamos se esse modelo gera a força de coerção política necessária para uma atuação eficaz dos governantes.

Não é difícil perceber que a questão da liberdade, que é o ponto forte do modelo Liberal, é o ponto mais crítico do modelo Marxista. E essa limitação ou falta de liberdade também compromete totalmente o aspecto da igualdade de oportunidades.

Nesse modelo aqueles que divergem substancialmente das ideias dominantes não podem sequer participar do processo político. Ficam automaticamente excluídos desse processo. Nesse cenário, é claro, desaparece a igualdade de oportunidades, pelo menos em relação àqueles que se opõem às ideias dominantes e ao sistema delas derivado.

No que diz respeito ao aspecto da adequação entre o nível de responsabilidade da função e o nível de compreensão dos indivíduos, por paradoxal que isso soe à primeira vista (uma vez que se trata de um modelo derivado de uma visão de mundo que acredita na igualdade de capacidades de todos os seres humanos, pelo menos em termos potenciais), esse modelo se mostra claramente superior ao modelo Liberal.

De um lado, esse modelo de escolha dos dirigentes que, como vimos, é escalonado, do tipo piramidal (ou “árvore invertida”), oferece uma igualdade de oportunidades relativamente maior (quando comparado ao modelo Liberal), uma vez que as eleições se dão sempre em grupos muito menores do que no caso do sufrágio de massa. No entanto, essa maior igualdade de oportunidades fica também muito prejudicada, pois ocorre apenas dentro da ambiência de um sistema de partido único, ou algo muito semelhante a isso.

De outro lado, esse sistema permite uma grande adaptação entre funções (responsabilidades) e níveis de consciência (capacidades). Isso porque as eleições para os sucessivos níveis de representação, cada vez mais amplos geograficamente, vão gradualmente aumentando os níveis de complexidade e dificuldade dos problemas a serem enfrentados, ou seja, vão aumentando os níveis de responsabilidade dos cargos (ou funções). Tudo isso paralelamente ao aumento da qualificação da população envolvida, uma vez que as sucessivas eleições resultam numa natural seleção de indivíduos mais qualificados, ou seja, elas implicam num “efeito de peneira”, sem nunca incorrer em eleições de massa.

E justamente por não se valer do sufrágio de massa, esse modelo, finalmente, organiza muito melhor a população envolvida no processo político. Isso se dá, exatamente, devido a essa estrutura de representações escalonadas, onde dentro de cada um desses níveis existe uma proximidade muito maior entre os representantes e os representados. Desse modo, ele gera uma coesão social muito maior do que os sistemas de eleições diretas de massa, os quais, devido à grande distância entre representantes e representados, enfraquecem muito a coesão da organização social.

Não obstante, uma vez que se trata de um sistema rígido e que não permite a liberdade de participação, a igualdade de oportunidades etc., ele acaba excluindo uma expressiva parcela da população e, desse modo, acaba gerando resistências e conflitos muito prejudiciais, além de uma inflexibilidade tão grande que acaba por minar a criatividade e, portanto, a vitalidade ou a dinamicidade de todo o sistema.

A realidade dos diferentes níveis de abrangência da consciência social dos seres humanos (desde o nível daqueles cujas consciências estão limitadas às questões mais concretas, até aqueles de maior quantidade de conhecimentos e compreensão abstrata) implica, mesmo nos níveis de maior alcance, na existência de grandes limitações, tanto em termos de conhecimentos quanto éticas.

Assim sendo, devido à realidade das limitações dos indivíduos (mesmo aqueles dos níveis de maior abrangência cognitiva), há razões, técnicas e éticas, para que sejam garantidas as divergências de opiniões na vida política das sociedades. Por essa razão, como demonstram os exemplos históricos, toda ordem que force um único direcionamento, sem admitir as divergências, invariavelmente termina em fracasso.

Seja lá como for, o fato é que esse sistema, embora pagando um preço totalmente inaceitável quanto à liberdade e à igualdade de oportunidades (que no longo prazo decreta o seu fracasso), consegue gerar uma maior adaptação entre funções e capacidades, em comparação com o modelo Liberal. Assim, devido à inexistência do sufrágio de massa, esse modelo gera uma coesão social que garante aos dirigentes um grande poder de coerção, o que historicamente lhes permitiu implantar profundas transformações socioeconômicas dentro dos países onde esse modelo foi aplicado. A China é um exemplo disso. Transformações essas que seriam impossíveis dentro da ambiência dos atuais modelos das democracias liberais.

Concluiremos nosso breve exame das limitações e dos pontos consistentes do modelo Marxista trazendo, em corroboração à nossa análise, duas citações de Maurice Duverger, seguramente um dos maiores cientistas políticos do século XX. Ao final da segunda citação, Duverger deixa claro que também tem reservas a esse modelo como um todo, mas não deixa de reconhecer que ele possui méritos organizacionais, pois afirma que os Marxistas:

“(…) desenvolveram uma estrutura ainda mais original, repousando em grupos bem pequenos (de empresa, bairro, etc.), fortemente reunidos pelos processos do “centralismo democrático”, e, contudo, fechados graças à técnica de ligações verticais: esse admirável sistema de enquadramento das massas tem contribuído mais para o êxito do comunismo que a doutrina marxista ou o pobre nível de vida das classes operárias.” (Os Partidos Políticos, p. 40; grifo nosso)

“Podemos pensar muitas coisas do Partido Comunista: porém devemos reconhecer que os mecanismos forjados por ele são de notável eficácia, e que não lhes podemos recusar certo caráter democrático, por causa deste cuidado constante de manter o contato da base, de estar “à escuta das massas”. (…) A força do Partido Comunista é a de haver estruturado um método científico que permite alcançar esses resultados, com a dupla vantagem do método científico: maior exatidão; e possibilidade de emprego por todos após uma formação satisfatória. Ainda mais profundamente, o valor desse método vem do fato de que essa força não é puramente passiva, não se limita a registrar as reações das massas, mas permite agir sobre elas, canalizá-las suavemente, prudentemente, porém profundamente. Pode-se deplorar o emprego da ferramenta: deve-se admirar sua perfeição técnica.” (Os Partidos Políticos, p. 93; grifos nossos)


Índice da Obra     Anterior: 5 – Falhas dos Atuais Modelos da Democracia Liberal     Seguinte: 7 – Problemas Mundiais e Modelos Políticos Dominantes